Antes do Pânico de 1907 se apoderar dos mercados financeiros dos Estados Unidos, a sede da Knickerbocker Trust Company (KTC), no centro da ilha de Manhattan, era vista como um templo romano. De acordo com os registros da época, o edifício exalava uma sensação de grandeza aparentemente duradoura e transmitia também um sentimento de que nada poderia abalar a empresa fiduciária de 23 anos. No entanto, quando uma multidão de depositantes se organizou do lado de fora das portas de bronze do prédio para recuperar seus depósitos na manhã de terça-feira, 22 de outubro de 1907, as fundações do grandioso edifício começaram a desmoronar (BRUNER, CARR, 2007).
Após distribuir cerca de US$ 8 milhões para depositantes em seus quatro escritórios de Nova York, a KTC suspendeu seus pagamentos e fechou suas portas duas horas e meia antes do final do horário comercial e só reabriu em março de 1908 (KAVOUSSI, 2010). A KTC tinha cerca de 18 mil clientes e 65 milhões de dólares em depósitos, era tida como um dos maiores trustes do Estados Unidos (VARTOLO, 2017).
A história começou em 16 de outubro de 1907, quando dois especuladores menores, F. Augustus Heinze e Charles W. Morse, sofreram enormes perdas em uma tentativa fracassada de monopolizar as ações da United Cooper, uma empresa de mineração de cobre. Na sexta-feira, 18 de outubro, foi divulgada a notícia de que o presidente da Knickerbocker Trust era associado de Morse: a notícia se espalhou pelo mercado e desencadeou uma corrida à sede da empresa.
De acordo com o site oficial do governo norte-americano, o Federal Reserve History, as Trust Companies não detinham um grande volume em reservas de dinheiro frente a seus depósitos, cerca de 5% em comparação com 25% dos bancos nacionais. As TC’s também não exigiam garantias para esses empréstimos, assim, os corretores os usavam para comprar títulos para si próprios ou para seus clientes e, em seguida, usavam estes títulos como garantia para um empréstimo à vista de um banco licenciado nacionalmente – que eram proibidos de conceder empréstimos sem garantia ou garantir o pagamento de cheques emitidos por corretores em contas sem fundos suficientes.
A suspensão da KTC duas horas e meia antes do término do horário comercial desencadeou uma crise financeira em larga escala na cidade de Nova York. A notícia de que alguns bancos estavam desacelerando ou suspendendo os saques provocou ondas de acumulação. Pessoas tentavam sacar os depósitos para mantê-los em casa, guardando o dinheiro em um cofre ou sob o colchão. Estima-se que, durante o pânico, cerca de 350 milhões de dólares foram retirados do sistema financeiro americano (VARTOLO, 2017). Documentos da época apontam que o magnata JP Morgan teve que intervir com o seu próprio dinheiro para encorajar outros banqueiros a ajudar a salvar a Bolsa de Valores de Nova York do colapso total. Em Vartolo (2017), a autora descreve que Morgan ligou para todos os presidentes de bancos em Nova York para juntos organizarem um “pool de dinheiro”, visando trazer de volta a confiança ao sistema financeiro americano. Ele era praticamente a única pessoa na cidade com poder de organizar empréstimos institucionais. Apesar de todo esforço alocado, as corridas a outras Trust Companies, como a Trust Company of America e LincoIn Trust, continuavam a acontecer.
Ainda de acordo com Vartolo (2017), a resolução de JP Morgan de ajudar a Trust Company of America e abandonar a Knickerbocker levantou à época questões sobre as suas próprias motivações e interesses, uma vez que diretores da Trust Company America eram também conselheiros de várias empresas industriais e ferroviárias com quem Morgan mantinha laços. Contudo, foi só após Morgan desembolsar milhões de dólares que o sistema financeiro norte-americano voltou a responder positivamente.
A consequência interna do Pânico também foi relevante. Moen e Taliman (1999) argumentaram que a experiência do Pânico de 1907 mudou a forma como os banqueiros da New York Clearing House Association (NYCHA) enxergavam o valor de um banco central, justamente pelo fato de o pânico ter se instalado, principalmente, entre as empresas fiduciárias, instituições externas dos membros da NYCHA sobre as quais, como citado anteriormente, não havia grandes regulações. Anos depois do pânico financeiro de 1907 e da resolução encontrada por JP Morgan à crise financeira, os EUA organizaram uma série de medidas na tentativa de não experimentarem novamente as ocorrências descritas acima. Em outubro de 1908, o Congresso aprovou a Aldrich-Vreeland Act, a legislação que criou a National Monetary Commission, responsável pelos estudos da adequação da moeda e do sistema monetário. Nelson Aldrich, responsável pela criação, havia sido encarregado de estudar o Banco Central inglês e a sua eficácia em casos de crises financeiras. Em dezembro de 1913, o Federal Reserve Act foi aprovado pelo Congresso, dando assim vida ao que hoje conhecemos como Federal Reserve.
No entanto, se a falta de regulação pode provocar riscos sistêmicos ao sistema financeiro, o excesso dela pode provocar aumento nos custos de intermediação e, consequentemente, menor acesso ao sistema financeiro. Demirguç-Kunt, Laeven e Levine (2003) mostraram que, a partir de uma análise de 1400 bancos em 72 países, regulamentações mais rígidas em relação à entrada e atividades bancárias aumentam o custo da intermediação financeira. O estudo argumenta que, conforme um determinado país implementa regras rígidas em relação à entrada no setor bancário e restrições às atividades bancárias e regulamentos que inibem a liberdade dos banqueiros para conduzir seus negócios, a consequência é um aumento nas margens de juros líquidas dos bancos. Sendo assim, é de suma importância que o país tenha regras claras que defendam a propriedade e a liberdade econômica e criem regulações que aumentem a capacidade empreendedora dos banqueiros.
Detragiache, Gupta e Tressel (2005) argumentaram que a instabilidade política e a corrupção são um obstáculo para o desenvolvimento financeiro, e manter a inflação sob controle melhora a eficiência e o desenvolvimento dos bancos. Além disso, uma melhor execução de contratos e mais acesso a informações sobre os mutuários estão associados a mais crédito ao setor privado.
Desta forma, observa-se que, desde o Pânico de 1907, responsável por mudanças institucionais profundas na organização financeira do mercado americano, o mundo passa por novas interpretações sobre como o sistema financeiro deve ser organizado. Conforme visto, a regulação pode impactar o custo de intermediação do setor financeiro (DEMIRGUÇ-KUNT, LAEVEN, LEVINE, 2003) e a corrupção e a inflação podem impactar a eficiência do sistema financeiro como um todo (DETRAGIACHE, GUPTA, TRESSEL, 2005).
Por Walter Pereira
Walter Pereira é formado em economia pela Universidade Mackenzie e associado 1 do IFL Jovem SP.
BRUNER, Robert F.; CARR, Sean. The Panic of 1907: Lessons Learned from the Market’s Perfect Storm. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228318688_The_Panic_of_1907_Lessons_Learne d_from_the_Market’s_Perfect_Storm
DEMIRGUÇ-KUNT, Asli; LAEVEN, Luc; LEVINE, Ross. REGULATIONS, MARKET STRUCTURE, INSTITUTIONS, AND THE COST OF FINANCIAL INTERMEDIATION. 2003 Disponível em: https://www.nber.org/system/files/working_papers/w9890/w9890.pdf
DETRAGIACHE, Enrica; GUPTA, Poonam; TRESSEL, Thierry. Finance in Lower-Income Countries: An Empirical Exploration. 2005. Disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2005/wp05167.pdf
FEDERAL RESERVE HISTORY. The Panic of 1907: This global financial crisis inspired the monetary reform movement and led to the creation of the Federal Reserve System. Disponível em: https://www.federalreservehistory.org/essays/panic-of-1907
KAVOUSSI, Bonnie. The Panic of 1907: A Human-Caused Crisis, or a Thunderstorm?: A Comparison Between The New York Times and Wall Street Journal’s Coverage of the United States’ First Modern Panic. 2000. Disponível em: https://histecon.fas.harvard.edu/crisis-next/1907/docs/Kavoussi-Panic_of_1907.pdf
MOEN, Jon R.; TALLMAN, Ellis W.. Why Didn’t the United States Establish a Central Bank until after the Panic of 1907?. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2491286
VARTOLO, Camilla. Financial Crisis in Historical Perspective: The Panic of 1907. 2017. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/156875313.pdf