A esquerda iliberal
No dia 22/10/22, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem em que Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de justiça do estado da Bahia e doutora em Ciências Político-Jurídicas pela Universidade de Lisboa, afirma o seguinte: “a ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo
democrático”.
Eu nunca imaginei ler uma frase como essa. Ouso a dizer que talvez nem George Orwell conseguiria imaginar uma distopia em que essa sentença fosse possível. A frase me leva a um questionamento: quando a esquerda ficou tão iliberal? Um texto publicado em 04/09/21 na The Economist, intitulado “A ameaça da esquerda iliberal”, aponta como a direita populista e a esquerda iliberal atacam a liberdade.
Mas, assevera: “O ataque da esquerda é mais difícil de entender, em parte porque na América “liberal” passou a incluir uma esquerda iliberal. Descrevemos esta semana como um novo estilo de política se espalhou recentemente pelos departamentos universitários de elite.
À medida que os jovens graduados conseguiram empregos na mídia de luxo e na política, negócios e educação, eles trouxeram consigo o horror de se sentirem “inseguros” e uma agenda obcecada por uma visão estreita de obter justiça para grupos de identidade oprimidos.” O texto continua: “eles também trouxeram táticas para reforçar a pureza ideológica, não colocando seus inimigos em plataformas e cancelando aliados que transgrediram – com ecos do estado confessional que dominava a Europa antes do liberalismo clássico se enraizar no final do século XVIII”.
Ou seja, é da esquerda iliberal a propriedade intelectual pela cultura do cancelamento. A revista Cult nº258 dedicou seu editorial à cultura do cancelamento. Na apresentação, Jerônimo Teixeira afirma o seguinte: “(…) o cancelamento é uma arma exclusiva da esquerda – em particular, da esquerda identitária que se preocupa mais em criar torções bizarras do idioma para neutralizar o gênero das palavras (todes e todxs compreendem do que estamos falando, certo?) do que em reconhecer as condições objetivas em que vivem mulheres, negros, trans, gays e outras tantas categorias vitimizadas.(…) a propriedade intelectual do cancelamento, no entanto, é da nova esquerda que Mark Lila (um pensador progressista) criticou com incisiva propriedade em “O progressista de ontem e do amanhã“. (2020, p.16-17)
Por incompetência ou incultura, a esquerda iliberal acredita que o mercado aberto de ideias é manipulado e, em razão disso, deve cancelar seus adversários. Disputar argumentos, ombro a ombro, parece que ficou démodé nos dias atuais…
A esquerda da velha guarda é defensora da liberdade de expressão. Bell hooks, teórica feminista, anticapitalista e antirracista, produziu um excelente ensaio em Outlaw Culture defendendo abertamente a liberdade de expressão e indicando que os progressistas devem defendê-la:
“(…) o cerne político de qualquer movimento pela liberdade na sociedade deve ter o imperativo político de proteger a liberdade de expressão (…)ativistas progressistas devem trabalhar politicamente para proteger a liberdade de expressão, para opor-se à censura.(…)”(1994, p.75)
Os progressistas iliberais, contudo, pensam que a equidade exige combate contra aqueles que são privilegiados e reacionários. Segundo o texto do The Economist, “isso significa restringir sua liberdade de
expressão, usando um sistema de castas de vitimização no qual aqueles que estão no topo devem se submeter àqueles com maior direito à justiça restaurativa.
Envolve também dar o exemplo de supostos reacionários, punindo-os quando dizem algo que é usado para fazer com que alguém menos privilegiado se sinta inseguro. Os resultados são chamadas, cancelamento”. Na sua infinita arrogância, a esquerda iliberal acredita que tem um plano simples e
óbvio para encerrar todas as opressões do Ocidente.
O que eles conseguem, contudo, é a opressão dos indivíduos, exatamente como faz a direita populista. Ou seja, ambos os extremos dominam a arte de oprimir; mas a esquerda iliberal oprime de um jeito FO-FO!
Eu sei que defender a liberdade genuína é um trabalho árduo pois demanda o imperativo de defender que seu oponente tenha o direito de falar ou reconhecer que seus inimigos venceram nas urnas.
Mas não há progresso sem liberdade.
Escrito por: Patthy Silva
Patthy é Comunicóloga, Católica Apostólica Romana, Pós-doutoranda em Sociologia (UFRJ) e trata de assuntos como relações raciais, educação e feminismo.
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