Mahommah Gardo Baquaqua nasceu por volta da década de 1820, no reino de Zugu, situado no Benin, escravo no Brasil, é autor de uma biografia única que narra como era o ambiente escravocrata em 1800. Baquaqua vinha de uma boa família, seu pai era maometano e sua mãe não tinha religião, além dele, a família tinha também outros cinco filhos, dois meninos e duas meninas. Ocupava a função de Chiricu, uma espécie de mensageiro real do rei de Zugu.
O rei morava a alguns quilômetros fora da cidade, então para visitar sua família, Baquaqua tinha que ir até a cidade. Em um desses dias que estava indo até a cidade visitar sua mãe, ele conta que foi seguido por uma pessoa que tocava um tambor, enquanto chamava seu nome. Baquaqua teria ficado contente, pois acreditava que a batida tinha sido composta em honra para ele. Perto da casa de sua mãe, havia um local que fabricava um tipo de cerveja africana chamada bagi, lá ficou bêbado sendo persuadido a ir com alguns companheiros visitar um rei que ele nunca ouvira falar em Zaracho, uma cidade que fica a mais de 20 km de Zugu. Ao chegar na cidade foi recebido muito bem pelo rei que os ofereceu muita bebida e eles beberam muito. Quando acordou de manhã estava preso e seus amigos haviam sumido. “Lamentei amargamente a minha tolice por ter sido tão facilmente enganado, tendo depositado toda a minha cautela em uma taça”- é o que ele diz em seu livro.
Aprisionado, foi levado para uma aldeia chamada Aruzo, logo em seguida partiu com seu senhor para um lugar chamado Chirachuri. Depois para Chamá, onde foi vendido, ficou apenas um dia por lá, fora revendido para uma mulher que o levou para Efau, que provavelmente é um lugar chamado Fon, um nome alternativo para Daomé. Ele ainda foi para as cidades de Grade e Zugu antes de ser colocado no mais horrível de todos os lugares, o navio negreiro.
“Ah! A repugnância e a imundice daquele lugar horrível nunca serão apagadas da minha memória. Não! Enquanto a minha memória existir neste cérebro distraído, eu lembrarei daquilo…” – Essa é uma pequena parte do que Baquaqua sentia no navio.
Era permitido se alimentar apenas de milho ensopado fervido, só era permitido beber apenas uma caneca de água por dia. Um colega desesperado por água tentou pegar a faca de um dos homens brancos que trazia água, depois disso ele foi levado ao convés e nunca mais foi visto. “Quando qualquer um de nós se rebelava, sua carne era cortada com uma faca e pimenta ou vinagre era esfregado para acalmá-lo”.
Chegaram a Pernambuco de maneira ilegal, pois o tráfico de escravos havia sido proibido no Brasil em 1822. Foi vendido para um padeiro, e ali, Baquaqua teve seu primeiro contato com o cristianismo, seu senhor se dizia cristão e fazia que os escravos adorassem e cantassem palavras que eles não sabiam o que significava, o escravo que demonstrasse desatenção era imediatamente punido.
Esse homem era um tirano, por isso, Baquaqua tentou fugir várias vezes, inicialmente ele se mostrou um escravo obediente e prestativo, porém era tratado e punido da mesma forma que seus companheiros que se embebedavam constantemente, então começou a beber da mesma forma, sendo assim todos do mesmo tipo: senhor ruim, escravos ruins. Seu sofrimento chegou a tal ponto que tentou se suicidar em um rio, mas foi salvo por algumas pessoas que estavam em um bote.
Depois de um tempo, foi vendido para o dono de uma embarcação, cuja esposa tinha um péssimo humor, “ela sempre me deixava em uma situação desconfortável diante do meu senhor, o que era sempre acompanhado por uma chicotada. Certas vezes fazia de tudo para que eu fosse chicoteado e outras vezes interferia para impedir, dependendo do seu humor “. O senhor de Baquaqua tinha sido contratado por um comerciante inglês para transportar uma quantidade de café para Nova York, foi combinado que ele e mais alguns escravos iriam acompanhá-los, naquela cidade não havia mais escravidão, era uma terra livre, – os últimos escravos em Nova York foram libertos em 1827 – algo que alegrou o coração de Baquaqua, aquele era o momento mais feliz de sua vida, as primeiras palavras que ele e seus companheiros aprenderam em inglês foi FREE (livre).
Ao chegarem em Nova York, alguns negros subiram a bordo do navio e perguntaram se eles eram livres. O capitão havia dito para não falarem que eram escravos, ele tinha medo de perder sua propriedade (nas palavras de Baquaqua) e disse para os escravos que Nova York era um lugar ruim e perigoso. Baquaqua queria muito ser livre, um dia, após beber bastante vinho, disse que não ficaria mais a bordo, ouvindo isso, o capitão conseguiu o trancar em um cômodo na proa do navio. Ficou ali por alguns dias, até que conseguiu fugir. Correu por muito tempo até parar em uma loja, mas não soube se comunicar direito com as pessoas, pois a única palavra que sabia falar em inglês era “free”. O vigia que o observava, e outra pessoa, se aproximaram dele e o levaram para um local que ele se refere como câmara de observação. Lá passou a noite, na manhã seguinte o capitão foi até esse local e o induziu a voltar para a embarcação, ele estava confuso e não sabia como agir. Os jornais da época relatam a fuga de três escravos de uma embarcação chamada Lembrança e logo depois esses escravos foram levados ao tribunal por um grupo de abolicionistas.
Todos os escravos foram levados até a prefeitura de Nova York, e perguntados pelo cônsul brasileiro se queriam voltar só Brasil, Baquaqua e outro escravo disseram que não, apenas uma escrava disse que voltaria com o capitão. Em seguida foi enviado ao Haiti e conheceu um reverendo chamado Sr. Judd, que fazia parte de um grupo de Missionários, onde permaneceu por mais de dois anos – “Ele me tratou com toda bondade. A cor para ele não era nenhuma razão para maus tratos” -.
Com eles, Baquaqua se converteu ao Cristianismo e se tornou protestante, foi batizado e retornou aos Estados Unidos para estudar. Durante a viagem um senhor de escravos que entrou no navio quis comprá-lo, não era incomum que ex-escravos fossem sequestrados e vendidos novamente como escravos nos Estados Unidos, na biografia Twelve Years a Slave: Narrative of Solomon Northup, é relatado esse acontecimento com Solomon Northup. Ao retornar aos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, ingressou na faculdade e ao concluí-la, se juntou às Missões Livres, uma organização formada por membros da Igreja Batista do norte dos EUA.
“Sou grato a Deus que desfruto as bênçãos da liberdade, em paz e tranquilidade e que agora estou em uma terra onde ninguém ousa me amedrontar…” disse Baquaqua quando foi ao Canadá, refletindo sobre seus anos de escravidão. Não se sabe o que aconteceu com ele depois desse período, sabe-se que ele tinha o sonho de retornar ao seu lar, mas não há relatos se ele conseguiu retornar. De toda forma, sua história traz relatos importantes sobre o processo de escravidão e tráfico de escravos no Brasil. Como também nos mostra que o período escravocrata não aconteceu isoladamente em cada país, histórias de vida de diversas pessoas passam pelas linhas e entrelaçam as histórias de alguns países, algo interessante de se estudar.
Mesmo que muitos não o conheçam, seu testemunho além de ser rico historicamente, é fortíssimo. Pois, ao mesmo tempo que entendemos a vida de Baquaqua enquanto escravo e traficado, conhecemos sua história. Vemos seu amadurecimento e acompanhamos toda sua trajetória de fé, em uma de suas cartas, enviada para seu amigo Cyrus Grosvenor, que morava em Nova York.
Na carta, ele pede que seu amigo ore pelo Cônsul brasileiro que disse que se o visse novamente em Nova York, o enviaria de volta ao Brasil como escravo. Sua história nos mostra o poder da resiliência. É possível ver seu amadurecimento ao decorrer do livro que o ódio que ele sentia, por tudo que passou foi desaparecendo, a ponto que mesmo quando as Missões Livres já não o fazia mais bem, ele não se afastou de sua fé, como também não os desprezou.
Seus ensinamentos nos mostram que apesar do que passamos, nossa fortaleza é forjada nos momentos em que precisamos ser fortes, e que o sofrimento não tem poder de nos definir, e isso só depende de nós!
Fotografia da capa da biografia de Baquaqua.
REFERÊNCIAS
- BAQUAQUA. Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua; 1854
- BTCAST. Baquaqua, Divino e narrativas de liberdade (retratos de baquaqua e divino). Entrevistados: Leonardo Cruz e Higor Ferreira. Entrevistador: Rodrigo Bibo. BiboTalk Produções, 16 nov. 2022. Você encontra em: https://open.spotify.com/episode/5NvlECiytiqG0DgXarg86L?si=VCwuR4cOQ4W5vwgkPLhDOg&dd=1