Censura e liberdade de expressão
Nos meados dos anos 1990, o governo canadense não autorizou que o livro “Olhares negros: raça e representação”, de autoria da bell hooks, entrasse no Canadá; foi considerado pelas autoridades canadenses como literatura que incita o ódio.
Cópias do livro foram adquiridas por uma livraria considerada “radical”. Em “Outlaw Culture”, bell hooks relata o caso e aponta que a censura aplicada pelo Estado canadense não foi a ela, mas à livraria. Após protestos, os livros foram liberados, mas um recado tinha sido dado: o Estado está de olho e pronto para censurar.
Censura e liberdade de expressão são tópicos que aparecem com frequência no debate público. Neste momento, o tema censura está em alta, graças às atitudes extrapoladas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, em nome do combate à desinformação, restringiu o direito de fala de muitas figuras públicas. Nem George Orwell seria capaz de imaginar uma distopia como a que parece que estamos vivendo.
No Brasil, a liberdade de expressão é comumente um tópico exposto por intelectuais associados ao liberalismo e ao conservadorismo. Normalmente, eles são homens e brancos. Como acadêmica negra, eu gostaria de usar este espaço para dar meus 20 centavos de contribuição para o debate.
De princípio, já declaro que subscrevo a posição de bell hooks: “o cerne político de qualquer movimento pela liberdade na sociedade deve ter o imperativo político de proteger a liberdade de expressão”.
A proteção da liberdade de expressão está associada ao conservadorismo e ao liberalismo, comumente. Contudo, bell hooks, que foi uma conhecida teórica feminista negra, progressista e anticapitalista, aponta que a liberdade de expressão deve ser protegida também por ativistas progressistas: “ativistas progressistas devem trabalhar politicamente para proteger a liberdade de expressão, para opor-se à censura.”
Tanto o movimento feminista quanto o movimento negro possuem reticências à oposição veemente à censura e o silenciamento passou a ser um aspecto aceito em ambos os movimentos. Segundo bell hooks, “a censura de vozes divergentes em círculos progressistas frequentemente passam despercebidos. (…) usualmente, a repressão é promovida pelos poderosos membros do grupo, a mais comum é um tipo de ostracismo ou excomunhão.”
A postura silente de movimentos progressistas perante à censura é facilmente observável no nosso contexto. Até algumas semanas atrás, várias instituições públicas mobilizaram indivíduos por todo o país para fazerem a leitura da carta em defesa da democracia. Hoje, após subsequentes atitudes demasiadas do TSE e da Suprema Corte em direção à restrição da liberdade de expressão, escutamos um silêncio ensurdecedor dos aguerridos democratas, que parecem não acompanhar o pensamento do conhecido filósofo Voltaire: “Posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-la”.
A penalidade aplicada aos indivíduos com posicionamentos heterodoxos dentro dos círculos progressistas pode acontecer através da exclusão de seus pensamentos ou textos em debates importantes, e até a sua exclusão de encontros e conferências.
O ativismo progressista teme que as vozes divergentes expressas de forma pública possam contribuir com os argumentos do grupo opositor. O esforço de censura empreendido por esse ativismo tem como principal foco criar uma imagem homogênea e positiva do grupo “oprimido” para o grupo opositor. Por essa razão, negros que não se rendem à agenda progressista, por exemplo, são duramente repreendidos por ativistas negros.
A elite da intelectualidade negra assume o papel de mediadora entre a comunidade negra e a cultura mainstream e define o que pode ser falado, por quem pode ser falado e quando deve ser falado; funciona como censor do pensamento.
Sem observar quão iliberal é esse comportamento, o alto clero do identitarismo sente-se absurdamente confortável para censurar quem diz defender, em nome do “interesse coletivo”. Não apenas censurar; sabotar e linchar. O cancelamento dentro da comunidade negra é avassalador e vem comumente acompanhado de altas doses de fúria e raiva (para lembrar Audre Lorde).
Repressão de falas via censura pode parecer politicamente correto, mas não passa de fascismo chique com pedigree, justificado a partir de uma artificial e romântica ideia de unidade e solidariedade.
Não existe liberdade de expressão controlada.
Escrito por: Patthy Silva
Patthy é Comunicóloga, Católica Apostólica Romana, Pós-doutoranda em Sociologia (UFRJ) e trata de assuntos como relações raciais, educação e feminismo.
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